quarta-feira, 5 de março de 2014

Ando meio desligado

- Bom dia.
A moça de cabelo preso e fardada, o velhinho de cabelos brancos e penteados para trás com brilhantina  e uma senhora de óculos segurando um guarda-chuvas responderam:
- Bom dia.
Alguns olharam para verificar com quem estavam falando, outros permaneciam com os olhos vidrados na rua para não perderem o ônibus das 06:45.

Um rapaz magro com um nariz avantajado e de mochila nas costas corria de encontro a multidão para esperar seu ônibus, pois acreditava estar atrasado. Na sua última passada, que significou a chegada no seu destino final, disse, ofegante:
- Bom dia.
A moça, o velhinho e a senhora responderam. Outros simplesmente fingiram não ouvir, ou estavam ocupados demais observando uma mulher que puxava de uma perna do outro lado da rua vestida totalmente de vermelho.

Um homem de cabelo quase raspado que vestia camisa, calça e sapato social se uniu a multidão. Respirou bem forte e isso fez seu nariz soar a típica zoada de inspiração e berrou:
- Este é um novo dia, irmões e irmãs!

Era perceptível que a senhora com o guarda-chuvas na mão havia preparado a letra "B" que se diluiu nos seus lábios graças ao susto causado pelo homem que carregava um livro com zíper debaixo do braço.  Numa vista rápida, o olho humano reconhece a imagem do seu semelhante e identifica qualquer corpo estranho.  Foi esse o motivo da maior observação: uma grande cicatriz na testa do homem sério com algumas rugas espalhadas.

O velhinho, coitado, talvez muito antiquado para reconhecer esses costumes de falar alto da modernidade, continuou com sua cabeça baixa, mas levantou seus olhos para que, de cantinho, pudesse ver alguns vultos de quem o havia incomodado às 06:50 da manhã.

- Nós estamos preparados, irmões, para este dia. Pelo menos eu, que tomei uma facada bem aqui, ó - apontou pra sua testa - e estou aqui, pra falar com os senhores e senhoritas que perdi meu tempo no hospital! De nada valeria se eu não tivesse fé em nosso Senhor Jeová, que ganhou esse nome e deixou uma história para ser contada!

A senhora compreendeu a história e observou mais uma vez aquela intrigante cicatriz na testa do homem. Resolveu continuar acompanhando o movimento da mão direita dele, que esticava o dedo indicador com o braço pro alto. Ela entendera que o homem era um representante de Deus e entendia o mundo tanto quanto Ele, e, por isso, tinha o privilégio de deixar claro a sua superioridade com seus gestos feitos com a mão.

- ... porque todos nós somos filhos e temos a obrigação de agradar a Jeová! Em nome d'Ele eu estou aqui, e decidi abandonar o crime... - sim, irmões, eu traficava drogas e também usava, mas isso é um passado, é um novo caminho! O Senhor abriu as portas para eu me tornar pastor, e eu aqui estou neste dia que se inicia! Quem acredita no poder de Jeová, diga "amém"!

O rapaz tirou seu celular da sua mochila e começou a escutar música.

Uma mulher de óculos escuros ria da outra do outro lado da rua porque ela puxava de uma perna.
Uma mãe brigava com seu filho por ele ter se molhado ao beber água na sua garrafinha. "Menino desatento, não presta atenção em nada do que faz! Já tomou uma queda hoje andando na rua!": ela dizia isso em alto e bom tom.  Mas o menino prestava atenção no velhinho, que se demonstrava estar fora de toda aquela realidade e pensava que sua mãe estava sendo injusta: o vovô sim não estava prestando atenção em nada no que se passava ao seu redor.

- Eu disse amém, irmões! Escutei um amém?  - o homem bom continuava a implorar por atenção.

Uma menina de cabelo amarrado e silhueta afinada berrou um amém distorcido, demonstrado ser a sua primeira palavra do dia.

- Esse é o problema do homem da atualidade, meus amigos! Não observam nada, não estão em contato mais com as palavras, principalmente as de Jeová!

O senhor soltou um riso sem mostrar seus dentes - provavelmente da dentadura - e fez um pouco de barulho. O homem bom ficou incomodado.
- Meu sinhô,  está faltando Jeová no seu coração! Como pode rir de uma pessoa que está aqui em nome do meu Senhor, e o sinhô não se importa com isso? Não procura responder, ler a bíblia, acreditar no poder do amém! O sinhô diz um "amém"? Eu ouvi um "amém"?

O velhinho levantou, lentamente, seu rosto em direção ao homem que berrava tanto que incomodava a sua pouca audição que a vida havia lhe roubado ao longo dos anos. De forma clara, mas baixa, soltou, como se estivesse cantando sua música favorita e tivesse saudades da mesma:

- Bom dia.

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